Livros e Piromaníacos

Tive o meu primeiro sobressalto que quase tocou a raiva, quando assisti, nos anos 60 do século passado, ao filme de François Trufault, que se intitulava FARENHEIT 451, baseado na novela de ficção futurológica de Ray Bradbury, esse mesmo, onde as brigadas de bombeiros tinham a diabólica missão de atear o fogo a bibliotecas inteiras, reeditando os autos de fé do III Reich, e onde os poucos resistentes, optavam, cada um, por decorar uma obra da sua preferência, para mais tarde a declamar de memória, salvando-a assim de um trágico e fatal esquecimento. À época, lembro-me de ter ficado revoltado, porque todos os tostões que amealhava eram para resgatar livros em segunda mão aos alfarrabistas de rua (como aquele concorrido pátio ao lado do  cinema Éden), e não concebia que o fruto da criatividade do espírito humano, adquirido com tanto sacrifício, e tratado com tanto cuidado e desvelo, pudesse ser inspiradora de mais perseguições e combustível para alimentar fogueiras. Bastava-me saber que a Biblioteca de Alexandria tinha sido uma das mais célebres bibliotecas e um dos maiores centros do saber da Antiguidade. Entre as muitas lendas que se confundem com os factos da História, tem destaque a história que se conta de que foi incendiada por volta do ano 642, por ordem de Amir ibne Alas, governador provincial do Egipto em nome do califa ortodoxo Omar, um maníaco do fogo purificador, que teria pronunciado uma sentença arrasadora, nos seguintes termos: «se esses livros se opõem ao Alcorão, devem ser destruídos, mas se esses livros estiverem de acordo com o Alcorão, então não precisamos deles para nada, e devem ser destruídos também.». Durante longos meses, as fornalhas que aqueciam a água dos balneários de Alexandria, teriam sido alimentadas com milhões de papiros daquela biblioteca.

Estava revoltado, mas em vão. Os piromaníacos, cada um à sua maneira, andavam por aíEm 1989 foi a vez de Salman Rushdie, escritor britânico de origem indiana, ser sentenciado com uma condenação à morte, decretada pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini, líder do Irão, na sequência da publicação do seu livro "Os Versículos Satânicos", considerado uma blasfémia contra o Islão. Em 1992 o subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, do governo de Cavaco Silva, vetou o romance "Evangelho Segundo Jesus Cristo" de José Saramago, da lista dos concorrentes ao Prémio Literário Europeu, com o argumento de que a obra atacava princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses. Depois, em 2005, a propósito das reacções desencadeadas pela publicação de algumas caricaturas do profeta Maomé publicadas por um jornal dinamarquês, comecei a acreditar que estamos a viver tempos complicados e perigosos. Depois, em 2015, aconteceu a matança na redacção do Charlie Hebdo. De lá para cá, não vivemos tempos melhores. Ai das artes e das culturas, quando a intolerância e as inquisições voltam a querer ditar regras e multiplicar os Indexes de obras proibidas, impedindo que os seres  humanos cultivem a comédia e o grotesco, contando histórias licenciosas e exercitando o riso. Pior que ter medo, é ser incapaz de o enfrentar.

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