A Cultura

Há muito, muito tempo, houve um programa na RTP2 chamado ACONTECE. Era considerado o único programa diário, de âmbito cultural que sobrevivia no espaço europeu, desempenhando um meritório papel no contexto do serviço público de televisão. Ora aquele programa, em Fevereiro de 2003, já andava debaixo de olho do ministro da Presidência do XV Governo Constitucional, um tal Nuno Morais Sarmento, que já fora "boxeur", e que entendia que programas de índole cultural eram caríssimos, só interessavam a uma reduzida faixa de portugueses, talvez para aí uns 163.000, logo uma audiência insignificante, e que colocava em séria desvantagem a maioria da população, pois não se justificava o desperdício daquele tempo de antena, com temáticas tão pouco apelativas. É esquisito ouvir um ministro a falar assim sobre cultura, como se a cultura fosse alguma pestilência, ou coisa para ser tratada abaixo de cão. Aliás, não era o marechal nazi Herman Goering que dizia que "sacava logo da pistola sempre que ouvia falar de cultura"? Pois bem, só faltou o Morais Sarmento dizer que lhe apetecia calçar as luvas de boxe. Mas nesta perseguição ao programa ACONTECE, o melhor ainda estava para vir. E isso aconteceu quando o ministro Sarmento concluiu, pragmático e arrasador, que feitas as contas, seria bem mais económico acabar com o programa, e como compensação, oferecer aos seus poucos espectadores (os tais 163.000) uma gratificante viagem de cruzeiro à volta do mundo. Em resposta a esta sugestão, Carlos Pinto Coelho, o coordenador da equipa, adiantou com alguma ironia que, feitas melhor as contas, e considerando a audiência nacional do ACONTECE, os tais cruzeiros, envolveriam um dispêndio financeiro que colocaria toda a RTP na bancarrota. Nada feito! Embora sendo serviço público, mas classificado como uma inutilidade e com a sentença ditada - apesar de toda a gente continuar a tecer-lhe os mais rasgados elogios -, o ACONTECE foi enviado para o "corredor da morte" a aguardar a respectiva punição, até que em Agosto de 2003, pela calada e aproveitando a sua suspensão temporária, por motivo de férias, deram-lhe a estocada final e deixou de ser emitido.
  
Passaram alguns meses até que um belo dia, cheio de curiosidade com a resposta que me iria ser dada, sentei-me ao computador e redigi o seguinte e-mail, que dirigi à direcção da RTP: "Exmos. Senhores: Dado que o programa ACONTECE terminou, tendo sido eu, desde longa data, um seu atento espectador, e baseando-me na solução proposta pelo ministro Nuno Morais Sarmento, aguardo que me seja oferecida, como compensação, a tal viagem de cruzeiro à volta do mundo. Fico a aguardar a vosso resposta que pode ser enviada para este endereço de e-mail. Aceitem os meus cordiais cumprimentos. Fernando Torres". Ainda hoje estou à espera da resposta.

NOTA - Quinze anos depois, aquilo que genericamente se define como cultura, e que habitualmente caracteriza o estádio civilizacional de um povo, está cada vez mais pelas ruas da amargura, e as verbas ridículas que o Orçamento de Estado lhe destina, reflectem a miopia e pouca atenção que tal área merece dos nossos governantes. A insolência e desdém, com que foi liquidado o ACONTECE, não foi apenas um episódio isolado contra a cultura; foi o princípio de uma caminhada que, passo a passo, se destina a provocar a sua erosão e completa extinção.

Comentários