Os Pires
Há quem diga que o calor do fogão e os
odores das cozinhas são propícios à criação de um ambiente de permanente
excitação, com inusitados efeitos inebriantes sobre quem lá trabalha. A dona Susana
Pires, de bochechas coradas e luzidias, seios fartos e braços roliços, que o
diga, enquanto limpa as mãos sapudas ao avental. Diz ela que trabalhar na
cozinha daquele restaurante, entre especiarias, rolos de carne e empadões, o
acto de manipular os alimentos e confeccionar os petiscos, é a coisa mais
excitante que existe ao cimo da terra, mil vezes melhor que ver um filme
pornográfico. O marido, o senhor Sidónio Pires, que também lá trabalha, portador
de um corpulento físico de lutador de Sumo, é da mesma opinião. Manipular
febras, preparar os miúdos para a canja, enrolar pastéis de bacalhau e fatiar toucinho-do-céu,
ao mesmo tempo que contempla com volúpia o vaivém das coxas rotundas da dona Susana,
a oscilarem de lá para cá, como pudim de gelatina, são coisas que o deixam
sempre em prolongado êxtase, a pensar nos trabalhos de casa.
Assim, todas as noites, seja quais forem as
horas a que cheguem ao domicílio, ele e a mulher, com os corpos ainda a
tresandarem a frituras, nunca abdicam de ter demoradas e ruidosas sessões de amor,
antes de se reclinarem para o merecido repouso, sonhando entre os queridos
tachos e panelas, com o molho das iscas e a ementa dia seguinte. Este hábito
apenas conhece uma excepção: a época de férias, quando vão a banhos, ali para
os lados do Baleal. O casal Pires, longe da cozinha e privados temporariamente
da sua tântrica fonte de inspiração, extingue-se neles o desejo, e ambos praticam a mais rigorosa
abstinência sexual. Fora este jejum, todos os dias é dia de festa grossa. À
chegada a casa, depois da estafante tarefa de terem dado de comer aos outros,
correm a afundar-se nas delícias e prazeres da carne. Para comprovar isto, há o
depoimento dos vizinhos do andar de baixo, bem como as exaltadas reclamações
que regularmente chegam à caixa de correio dos Silvas, pois todas as madrugadas
a população do prédio é acordada a desoras, com os guinchos e voluptosos
rangeres, dos faustosos banquetes carnais,
daquele incansável casal de feiticeiros gastronómicos. Alguns
prédios parecem condenados à permanente barafunda de obras sem fim; ali naquele
instalou-se um espectáculo estereofónico de sexo ao vivo, em modo de sessões
contínuas. O viúvo do terceiro esquerdo, cansado de protestar, acabou por
passar a dormir na auto-caravana, e a dona Eduarda do segundo direito, que sabe
que ao Domingo os Pires fazem questão de dormir até mais tarde, logo às sete da
manhã, liga a aparelhagem e põe a tocar em altos berros a Carmina Burana. Diz
ela, de sobrolho carregado, que amor com amor se paga.
Com isto fica provado que há muitas vias para chegar aos píncaros, que o
Kama Sutra está sempre a ser reinventado, pois o erotismo plasma-se através dos
jogos, desejos e artifícios tão improváveis quanto levianos, que nem sempre estão
ao alcance do comum dos mortais.
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