O Jogo da Chave

Tenho um relógio de pé alto do século XIX, em madeira de cedro e de fabrico alemão, ou melhor, prussiano, que não gosta de vibrações. Apenas desacerta quando há trovoadas ou obras com martelos pneumáticos, nos outros andares do prédio. Mexer-lhe nos ponteiros só quando não pode deixar de ser, como quando ocorrem as estúpidas mudanças da hora de verão ou de inverno. Fruto de não sei quantas partilhas, há não sei quantas gerações, acabou por vir morar connosco há perto de vinte anos. Baptizámo-lo de Bismarck.

O Bismarck tem três chaves; uma para abrir a portinhola traseira para aceder ao mecanismo, outra para dar corda no orifício lateral, e outra para aceder ao painel envidraçado frontal, que dá acesso ao pêndulo e aos ponteiros do mostrador. As outras duas chaves estão penduradas no chaveiro lá de casa, para serem usadas quando são precisas, mas a terceira é a protagonista de um jogo que eu mantenho com ela, e como a chave é minúscula e belíssima, ainda mais aliciante é o desafio. Sempre que a uso, seja para atrasar ou adiantar o relógio, tenho por hábito guardá-la depois num sítio diferente, até à próxima operação de acerto. Sou um bocado maníaco, é certo, mas impus a mim próprio este jogo de escondidas, com o objectivo de espevitar a capacidade de memorização, a par do gosto pela diversão. Mas o jogo nem sempre resulta. Perco quase sempre o rasto da chave quando vou à procura dela. Começo por espremer as meninges sem sucesso, depois olho em volta, a tentar reproduzir os passos da anterior operação de ocultação, mas acabo quase sempre por ter que revolver tudo à procura da chave. Habitualmente, depois de muita pesquiza, consigo encontrá-la, mas da última vez foi em vão. Quando isto acontecia, a Rute vinha sempre com a mesma pergunta; - Porque é que não assentas na agenda essa parvoíce do esconderijo da chave? - Ora, atalhava eu, sabes bem que assim o jogo deixava de ter graça... e cá em casa nada se perde, tudo acaba por aparecer...

Já tinham passado dois dias desde que ocorrera a mudança para a hora de inverno, e o Bismarck continuava imperturbável, a exibir a hora de verão. Como raramente desisto, fiz mais uma rusga pelo aposento. Pelo chaveiro onde repousavam as outras duas irmãs, pelas gavetas, armários, bibelots, debaixo dos naperons, dentro de caixas e caixinhas, até que de repente se acendeu uma luz. - Ah, já sei, foi na caixa das bolachas! Procurei, mas a caixa das bolachas não estava no local do costume. Perguntei à Rute pelas bolachas e a resposta veio rápida e demolidora; - As bolachas estavam com bolor e deitei-as fora. - E a caixa? Perguntei eu com o coração a palpitar. - A embalagem foi com elas. Fiquei siderado. - Lá se foi a chave do relógio, aquela pequenina obra de arte, gemi eu, ao mesmo tempo que quase desfalecia. A Rute não esperou pela demora: - Vês, eu sempre disse que algum dia chegaria em que o jogo acabava mal... Deixa lá, chama-se o Alfredo que ele resolve o problema. Até lá, para manteres o jogo das escondidas a funcionar, passas a esconder a chave da gaveta onde tens guardadas as revistas das gajas nuas, e tudo de compõe, sentenciou a Rute, a esboçar um sorriso áspero, indiferente ao meu desânimo.

Agora, enquanto não arranjar chave substituta, o ancião Bismarck vai ficar assim, impassível, com o pêndulo a oscilar na sua mecânica e magnânima indiferença, e com o mostrador a exibir mais uma hora, à espera que lá para Março do ano que vem, a hora de Verão lhe devolva o tempo certo, fingindo que há alguma ordem na desordem do tempo.

Fernando Torres - Outubro 2018 - Série CONTOS BREVÍSSIMOS

Comentários