Recordações dos Anos de Chumbo


Tempos de escola primária, nos primórdios dos anos 50 do século passado. Saía de casa o mais cedo que pudesse, para ganhar tempo para a brincadeira no pátio do recreio, antes que se ouvisse o badalo a chamar os meninos à sala de aula. Sim, apenas os meninos, porque naquele tempo, nas escolas primárias (e também noutros estabelecimentos de ensino), não havia turmas mistas, nem turmas para meninos e turmas para meninas. Era muito pior. Havia uma escola para meninos e uma escola para meninas, separadas por uma alta vedação de rede e com horários de recreio diferentes, por causa das tosses. Mesmo assim, ai de quem fosse apanhado a espreitar as meninas ou, não sendo irmãos, a fazer-lhes esperas à saída das aulas...  
 
Nas salas de aula, por cima do quadro de ardósia, havia um crucifixo, com as fotografias vigilantes do Oliveira Salazar de um lado, e do Craveiro Lopes do outro. Na parede ao lado estavam pendurados os mapas de Portugal e das colónias. Na primeira classe levei duas ou três galhetas, porque me distraía facilmente com as ilustrações do livro de leitura. As janelas da sala eram de guilhotina e os vidros estavam pintados de branco, apenas deixando entrar a claridade. Durante a aula o professor abria duas ou três janelas para arejar, mas quando chegava o intervalo da manhã, voltava a fechá-las, para que não nos distraíssemos com as brincadeiras e algazarras que os alunos das outras turmas faziam no pátio, onde era permitido tudo menos jogar à bola. O nosso professor, da primeira à quarta classe, foi sempre o mesmo, daí o conhecer-nos de ginjeira. Nunca concedia qualquer intervalo de recreio. Sair da aula só para se ir à retrete, um de cada vez, depois de levantar o dedo e fazer o pedido, quando a necessidade apertava. Houve um dia excepcional em que a rotina foi quebrada. A empresa que tinha começado a comercializar os novos e instantâneos "caldos knorr", ofereceu uma prova do caldinho no refeitório da escola a todos os meninos. O professor avisou que era facultativo, só lá ia quem quisesse. Fomos todos.   
 
O professor era muito exigente, e coisa que nos fazia muita confusão nos nossos exercícios de leitura em voz alta, era ele postar-se à nossa frente, e daí acompanhava e corrigia-nos, lendo o texto de pernas para o ar. Todos tínhamos que andar de bibe branco, abrindo-se excepção para os meninos pobrezinhos, como o Tolentino, filho do peixeiro, ou o Márcio, filho do petrolino, os maiores consumidores de reguadas e ponteiradas, que andavam descalços, nunca faziam os trabalhos de casa, chegavam sempre atrasados, e moravam numas barracas na Azinhaga das Murtas, para os lados do Hospital Júlio de Matos. As palmatoadas castigavam quem chegava atrasado, quem fazia erros, não respondia por falta de estudo ou desafinava a cantarolar a tabuada. Não podíamos falar entre nós, trocar gestos ou olhares com o parceiro do lado, pois essas desatenções davam direito a certeiras ponteiradas nas orelhas. Ao passo que as outras turmas tinham os seus momentos de canto coral, aprendendo e exercitando o Hino Nacional e da mocidade portuguesa, ali, vá-se lá saber porquê, essas matérias não entravam. E quanto às leituras, o professor tinha por hábito saltar os textos de índole religiosa.  
 
Um dia, por alturas da segunda classe, o Márcio entrou na aula ao pé-coxinho, a sangrar de um dos pés. Tropecei num prego, disse ele a fungar e a choramingar. O professor chamou o contínuo e mandou-o com o Márcio à farmácia para levar uma injecção contra o tétano. No dia seguinte, à porta da aula estavam dois pares de sapatilhas velhas, mais um recado do professor: ninguém voltava a entrar na aula descalço. Como eu já denunciava dotes artísticos, na época do Natal era-me dada a incumbência de fazer numa metade do quadro, um desenho alusivo à quadra. Era a única época do ano em que o professor, para eu levar a cabo a tarefa e dar os retoques finais, ia buscar ao armário da sala a caixa do giz de cor. Um dia chamou o meu pai à escola, quando se apercebeu que eu era míope, pois nem sentado nas carteiras da frente conseguia ler o que estava escrito no quadro. O meu pai aproveitou a oportunidade para se queixar que eu apreciava "histórias aos quadradinhos", ao que ele respondeu: deixe-o ler "histórias aos quadradinhos", tudo o que ele quiser. Olhe, eu próprio sou assinante do "Cavaleiro Andante". Quando chegar a altura, ele irá fazer outras escolhas. Duas semanas depois já andava com os meus primeiros óculos a ser objecto de chalaça dos outros. Ah, também deixei de andar a ler "O Mosquito" às escondidas. Curiosamente, aquele professor não repreendia quem era canhoto. Apenas dizia que nos devíamos exercitar para saber escrever com as ambas as mãos. Algum tempo depois, percebi porquê. 
 
E foi sempre assim, durante os quatro anos da instrução primária, entre 1952 e 1956. 

F.Torres

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