Conto Negro e Curto - O Segredo


O Bruno Pandemónio, homem de idade incerta, tinha sido abandonado na roda dos enjeitados da Misericórdia. Tinha pouco de pitoresco. Deserdado de tudo, o apelido advinha-lhe da sua irreverência e da tendência para gerar conflitos incontroláveis, a partir de situações minúsculas. Dormia no portal de Santo Estevão, cirandava pelo empedrado húmido e escorregadio das vielas e recantos de Alfama, passeando os andrajos e a miséria, misturados com muita revolta, insolência e agressividade provocatória. Ninguém lhe dava atenção nem trabalho, pedia esmola aqui e ali, disputava nos becos os restos de comida com os cães, ou roubava o que podia, fosse nas vendas ou nos mercados. As caixas das esmolas das igrejas eram a sua preferência. À custa disso levava pancada e passava mais tempo nas enxovias da guarda do que em liberdade. Falava pouco mas quando por alguma razão conseguia que lhe dessem atenção, costumava berrar a plenos pulmões, aquela frase repetida vezes sem conta: 
- Vocês só se livram de mim quando descobrirem o meu segredo.
Certo dia, no Pátio do Carrasco, um cão atravessou-se no seu caminho. O Bruno Pandemónio não hesitou e viu ali a oportunidade para descarregar a sua ira. Apesar dos latidos do animal, pontapeou-o barbaramente, foi-se juntando povo a assistir, até que que a tia Joana Martinho veio cá fora, se interpôs e gritou:
- Pára Bruno, és uma cavalgadura, deixa o bicho em paz... ao que o Pandemónio respondeu no seu habitual tom de escárnio:
- Vocês só se livram de mim quando descobrirem o meu segredo...  
- Tu e o teu segredo que se danem. Maldito sejas! És um homem sem coração... ripostou a tia Martinha de dedo em riste.
Dito isto, o Bruno imobilizou-se, fechou a boca, escancarou muito os olhos, caiu para o lado fulminado e nunca mais se levantou.
Ninguém mais se atreveu a contrariar a tia Joana, mas não evitou que tivesse sido acusada de bruxaria pela Santa Inquisição. Corria o ano de 1755, o caso deu que falar mas o pior ainda estava para vir.

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