Mortalidades


É uma inevitabilidade. Todos os dias morrem pessoas, umas conhecidas, outras desconhecidas. Nascemos para morrer. Todos os dias morrem criadores, cada um na sua arte, uns mais artífices que artistas, uns maiores que outros, uns com obra concluída, outros com ela inacabada, mas há alguns que por me terem servido de bússola, quando desapareceram, deixaram-me transitoriamente amargurado, quase deprimido. Foi o caso de Albert Camus em 1960 (apenas soube da sua morte em 1964), de Jorge Luís Borges em 1986, de Vergílio Ferreira em 1996, de Sophia de Mello Breyner Andresen em 2004, e agora, de José Saramago em 2010, e mais uma meia dúzia de outras figuras marcantes, repartidas entre prosadores, poetas e cineastas, que entretanto se extinguiram. Ontem estavam, hoje já não estão. Quando partem, é como aquela ondulação que nos faz, momentaneamente, perder o pé. Depois, vem uma onda mais alterosa, atira-nos contra as rochas, e saímos dali exaustos, carregados de esfoladelas e a lamber as feridas. Como suponho que irá acontecer, haverá mais dois ou três casos de criadores que admiro, que num espaço de tempo mais ou menos curto - e porque esqueço facilmente que eles não têm o dom da imortalidade física, e não me contento com a sua provável imortalidade espiritual - é quase garantido que voltarão a fazer-me experimentar esse travo amargo de orfandade, de perda quase irreparável. Cessada a sua torrente criativa, a tal bússola que me apontava vários nortes e outros tantos desnortes, de repente, queda-se fossilizada no espaço e no tempo.
Como muito bem exprimiu a Clara Ferreira Alves, quando perdemos um amigo (mesmo aqueles com quem apenas convivemos através das obras) é como se nos sentíssemos envelhecer precocemente. Comigo, e de uma forma um pouco mais radical, arrisco dizer que é mais uma espécie de corte do cordão umbilical, com que o espírito criativo sustenta, quem dele se alimenta. Pára esse fluxo e logo aí morre um pouco de nós próprios. Não fosse o espólio que perdura, a suave turbulência e o maravilhoso que emana das transfusões que recebemos das suas obras, quase me atreveria a dizer que pouco ou nada faltaria para, mesmo sobrevivendo-lhes, morrermos com eles.
2010 Junho 21

ADENDA- Parece uma ressurreição, uma materialização, um erguer-se das cinzas, um sarcástico manguito à inevitabilidade da morte. É uma notícia insólita, mas que torna mais suportável este Verão incaracterístico de 5 de Julho de 2018. Ao fim de 20 anos de ter sido escrito, e 8 depois da morte do autor, foi descoberto no computador de José Saramago um inédito 6º volume dos Cadernos de Lanzarote, que nunca ninguém tinha visto, apesar de a obra ter sido referida pelo escritor em várias entrevistas. É provável que a tenha esquecido, com o turbilhão que a sua vida sofreu, depois de ser agraciado com o Nobel da Literatura. Que sorte o seu computador não se ter avariado ou o disco rígido não ter sofrido um daqueles danos irreparáveis! Salvo o facto destes Cadernos de Lanzarote-6 irem ser publicados ao abrigo do abjecto AO90 (por quase certa imposição de Pilar del Rio), lá iremos deleitar-nos com mais alguns saborosos textos de Saramago, que escaparam de ficar irremediavelmente perdidos. Todas as editoras mundiais, suspiram de ansiedade, e eu também, pois aprecio o género. Será publicado em 8 de Outubro deste ano.

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