Conto Breve - Juvenália



Já tinha publicado três romances com razoável êxito, e começara a pensar em dedicar-me à escrita, como modo de vida. Com essa ideia instalada na cabeça, tinha projectado avançar para um novo romance, começara a rabiscar alguns tópicos e um esqueleto da história, tinha tirado alguns apontamentos, mas sentia necessidade de mudar de ambiente para começar a escrevê-lo. Não era na capital, mergulhado na agitação cinzentona de 1965, que conseguiria levar a cabo a tarefa. Falei do assunto com o Ricardo, o meu editor, e ele disse-me: - Não te preocupes. Arranjo-te um sítio em condições, basta falar com o Abelaira. Ele tem muitos conhecimentos. Duas semanas depois, fiz as malas e mudei-me para aquela aldeola perto de Tomar. Era uma moradia muito simples, com um quintal nas traseiras, equipada com tudo, desde roupas de cama até louças e talheres. Imaginava eu que a minha estadia não seria longa. Tudo dependia de como o meu trabalho fosse progredindo. Instalei a mesa e a cadeira para a máquina de escrever junto da janela da saleta, e preparei-me para o trabalho. Uma semana depois eram mais as folhas de papel amarrotadas pelo chão, com textos incompletos, que páginas dactilografadas  com prosa decente. Era mais o tempo que passava, em curtos passeios, de cá para lá, a tirar medidas à saleta, à espera que alguma ideia desabrochasse, do que aquele que passava a matraquear no teclado da Olivetti. Entretanto, as folhas amarrotadas iam-se acumulando pelo chão, ao mesmo tempo que começava a instalar-se pela casa uma grande desarrumação, com roupa suja e louça por lavar, própria de quem não tem a mínima ideia do que são tarefas domésticas.

Bati à porta da casa ao lado, para pedir ajuda. Apareceu à porta a dona Fátima, esposa do senhor Simão, homem dos sete ofícios, a quem todos recorriam na hora dos apertos. Apresentei-me como o inquilino da casa ao lado, e expliquei-lhe que estava a debater-me com falta de braços. Que era escritor, incapaz de dar conta das tarefas domésticas, e que tinha a casa a precisar de alguém capaz de pôr tudo no seu devido lugar. Riu-se. - Não se apoquente. Talvez amanhã, eu falo com a Juvenália. Ela vem cá dar-lhe uma ajuda. E de facto veio. Era uma mulher jovem, com pouco mais de 30 anos, morena, cabelo negro e com um permanente esboço de sorriso nos lábios. Deitou um olhar inquisidor sobre a confusão instalada, combinámos o salário, que viria três vezes por semana, que numa delas faria compras, e nas outras a lida da casa. Ficou assente que só arrumaria a saleta onde eu trabalhava quando eu lá não estivesse. Concordou. Com apenas três visitas da Juvenália, onde antes reinara a anarquia, voltou a dominar a arrumação e a limpeza. Cumpria rigorosamente o acordado e foram muitas as vezes que a dispensei mais cedo. Dias depois contou-me que vivia ali perto, logo a seguir à capela, na companhia do irmão deficiente da guerra em Angola, preso a uma cadeira de rodas, que os pais já não eram vivos e que gostava muito de ler. Fui até ao monte de livros que trouxera comigo, escolhi o "Xerazade e os Outros" da Fernanda Botelho e ofereci-lho. Agradeceu com um brilho de felicidade nos olhos. 

Aquilo que eu pensava resolver em dois ou três meses, estava a arrastar-se penosamente. O meu romance não progredia. Os papeis amarrotados já fariam uma pirâmide de razoável dimensão, não fosse a Juvenália, que com silenciosa eficácia, os ia fazendo desaparecer, quando eu ia dar uma volta pelo quintal. Um dia de manhã, depois de me fazer umas torradas, atreveu-se a perguntar: - O seu trabalho não está a correr bem, pois não? Respondi-lhe que não. E expliquei-lhe que o pior que pode acontecer a um escritor era ficar bloqueado, sem saber para que lado se virar, para encontrar um ponto de fuga que permitisse dar continuidade à sua narrativa. Fui até ao café e telefonei ao Ricardo. Contei-lhe o meu pânico e desespero, e ele tentou acalmar-me. Que os bloqueios não duram sempre, acontecem aos melhores, que chega um dia, e sem disso nos apercebermos, a prosa volta a jorrar. Agradeci o amparo. Depois, por meias palavras, contou-me que a polícia tinha assaltado a Sociedade de Escritores e que o Manuel da Fonseca tinha sido preso. Na semana seguinte recebi a visita de um jornalista do Diário de Notícias. A Juvenália preparou chá e uns biscoitos. O jornalista queria falar-me sobre os romances que eu já publicara e os planos para o futuro. Também na entrevista andei aos solavancos, a debitar as banalidades do costume, quase sem sair do mesmo sítio. Um pequeno desastre. Nas semanas seguintes pus a máquina de escrever de lado e optei por tentar escrever à mão, mas o resultado não foi muito diferente. Muitas vezes imaginava como seria bom ser como o  Pessoa, que se deitava sempre com papel e caneta na mesa-de-cabeceira, para registar aquilo que sobrava dos seus sonhos, quando acordava a meio da noite. Só que eu não tinha o privilégio de sonhar. Os meus sonos nada registavam, eram pesados como chumbo, negros e opacos como a morte, e aqueles dias cinzentos de Novembro vieram aprofundar ainda mais a minha improdutividade. Parei de escrever e debrucei-me nos sermões do padre Vieira e nos poemas da Sophia, à espera de uma redentora luz, que teimou em não se acender.    

Entre Janeiro e Fevereiro de 66 fui buscar à pasta dois ou três artigos que havia escrito há alguns meses, e foi com esses materiais que cumpri os compromissos que tinha com os jornais O Primeiro de Janeiro e O Século. Na verdade, a fonte das palavras mantinha-se teimosamente seca, e foi então que comecei a pensar seriamente em regressar a Lisboa e ao ensino, abandonando temporariamente a pretensão de viver da escrita. Tinha ido à procura de lã e voltava tosquiado. No dia seguinte à tarde, e antes da Juvenália regressar à sua casa, chamei-a e disse-lhe que a minha estadia estava em vias de terminar, que levasse com ela as mercearias que não fossem consumidas, e que depois fecharíamos as nossas contas. Concordou, mas notei-lhe no olhar uma réstia de tristeza, ao mesmo tempo que dos seus lábios se desvanecia aquele sorriso brando que sempre a acompanhava. Aproveitei o resto do dia para emalar os meus pertences, e dar uma volta pela casa, verificando que nada ficava esquecido. Deitei-me tarde e dormi mal. Pela manhã voltou a Juvenália, trazendo consigo um embrulho muito bem atado. Paguei-lhe o que estava em falta, agradeci-lhe a ajuda que me prestara durante todos aqueles meses, e ofereci-lhe a meia dúzia de livros que trouxera comigo. Aceitou com um leve rubor a tingir-lhe o rosto e depois disse: - Tenho aqui uma coisa para o senhor doutor, mas prometa-me que só desembrulha em Lisboa, e disse isto ao mesmo tempo que me estendia o tal embrulho muito bem atado. Perguntei-lhe qual a razão da oferta, esboçou um sorriso e um trejeito em tom de desculpa, insistiu com o seu pedido, e lá acabei por prometer que só desvendaria o mistério do conteúdo do pacote quando chegasse à capital. Foi-se embora com um braçado de livros, e eu, fechada a casa e feitas as despedidas com a dona Fátima e o senhor Simão, regressei à minha Lisboa agitada e cinzentona, pejada de bufos e de pides.     

Com a casa fechada há quase um ano, o cheiro a mofo tinha tomado conta de tudo. Abri as janelas para ventilar o ambiente e logo me lembrei da Juvenália, e dos milagres que ela ali poderia fazer. E por falar nela, logo me veio à lembrança o pacote que ela me metera nas mãos, com a promessa de só o abrir em Lisboa. Tirei-o da mala, pu-lo em cima da mesa, desmanchei os laços, abri o embrulho e fiquei incrédulo. Eram, nada mais, nada menos, que duzentas e tal folhas dos meus textos abandonados, que eu amarrotara e ia juntando no chão da saleta, convenientemente desdobrados e passados a ferro, para serem usados no verso com uma longa narrativa, escrita com uma caligrafia adulta, denunciando que pertencia a uma pessoa com hábitos de escrita. Era tal a curiosidade que me esqueci de jantar. Fiz café com o resto de uma embalagem que ficara ali por casa, e preparei-me para passar a noite a fazer um mergulho no manuscrito da Juvenália. Li as últimas linhas quando começava a raiar a aurora, para concluir que aquilo era o livro que eu tinha deixado mal começado, escrito com outras personagens e outras palavras, numa linguagem límpida e despretensiosa, longe de ser aquela torrente impetuosa que eu imaginara. Era mais um lago de águas mansas e margens acolhedoras, que respeitava o fio condutor do esquema que eu havia delineado, e cujas folhas estiveram quase um ano, coladas na parede da saleta com fita adesiva. Ainda aturdido, esperei pelas dez horas para telefonar ao Ricardo. Disse-lhe que tinha urgência em falar-lhe e ele disse-me para ir até lá. Contei-lhe em traços largos o que tinha sucedido e coloquei à sua frente a resma de folhas do manuscrito. Leu algumas partes, e percebi que também ele se estava a entusiasmar. Fomos almoçar ali perto e o Ricardo levou com ele o manuscrito para continuar a apreciação. No fim disse: - Já viste o que se anda a perder por este país fora? A tua Juvenália tem potencial e isto é material perfeitamente publicável. Só falta arranjar um título e um dactilógrafo. Volta lá e fala com ela.

Mais tarde, saí da editora, comecei a atravessar o Jardim do Príncipe Real e deixei-me ficar por ali, sentado num banco, embalado pelo trémulo chilreio dos pássaros, a recapitular e a digerir o que acontecera naquele ano, no qual eu assistira a um quase milagre. Em folhas amarrotadas e passadas a ferro, tinham sido trazidos à vida os destroços de um cadáver em forma de livro. A Juvenália deitara mãos à obra e tinha esculpido o romance que eu nunca fora capaz de escrever.

Calhandriz, 10 de Junho de 2019

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