A Aventura da Escrita


Comparável aos seixos que vão repousar na margem do rio, depois de revolutearem na corrente, ou os ventos, chuvas e aluviões que varrem a Terra, esculpindo novos volumes e depositando-se em sedimentos, que são os seus registos, acabando por contar à sua maneira, uma história da Terra, a escrita corresponde à materialização do pensamento e da criatividade humana. Embora com outra origem, não comparável aos processos mecânicos da natureza, é o instrumento de registo do pensamento e da interacção humana ao longo dos tempos, que perpetua a memória dos factos e acontecimentos, vinculando a comunicação. Estratifica-se através de documentos, jornais, livros e bibliotecas. Se na natureza os sedimentos se organizam de forma caótica e aleatória - muito embora depois os possamos analisar e descodificar -, a escrita humana sedimenta-se segundo um sistema organizado de registo, que lhe dá coerência e significado, aberto à interpretação, para dela extrairmos o rumo, sentido e  intenção de quem escreveu. A Patrícia Portela escreveu há dias que não nascemos com o dom da leitura e da escrita, mas apenas com a faculdade de ver e falar. Ler e escrever são, portanto,  competências que se adquirem à posteriori. A grande diferença é que a escrita, como fixação da linguagem falada, não é eterna. Como disse David Diringer, "nenhuma outra extinção pode ser comparada à extinção da escrita: a pedra, o barro e os ossos podem ser enterrados, disseminados ou partidos, e mesmo assim sobreviverem; antropólogos e arqueólogos podem reconstruir cidades pré-históricas e até, em certa medida, reconstruir os hábitos dos homens que nelas viveram; mas a linguagem desses mesmos homens está irremediavelmente perdida e, consequentemente, a sua religião, o seu pensamento e os seus mitos." Mesmo dando-se o caso de sobreviverem eventuais documentos dessa língua extinta, se não houver uma outra “Pedra de Roseta” que pelo método comparativo, conduza à sua descodificação, essa língua permanecerá para sempre indecifrável.

Ver-se envolvido na transição da era industrial para a era digital ou tecnológica, assistindo à modificação das relações humanas e de trabalho, bem como dos hábitos e comportamentos da sociedade, mais os fenómenos, desafios, conflitos e traumas que lhe estão associados, é uma experiência que tem tanto de única, como de incómoda e revolucionária. Quer isto dizer que, no que respeita aos modos de comunicação básicos, no espaço de 50 anos, de 1970 até à actualidade, com a introdução das tecnologias da informação, da comunicação digital e da expansão da internet, assistimos à progressiva substituição do livro-objecto pelo e-book, vimos o eclipse do jornal de papel, substituído pelo jornal online, e da extinção do serviço postal pelo processo planetário quase instantâneo que é o correio electrónico. Se antes íamos comprando livros ao longo dos anos, fazendo crescer as nossas bibliotecas pessoais, ao ponto de as nossas casas acabarem atravancadas, hoje, todos esses livros podem ser descarregados das redes de distribuição da internet, para virem acomodar-se numa pequena parcela do disco rígido do nosso computador portátil, ou em duas ou três insignificantes pen-drives, isto para não falar na grande economia de recursos e simplificação de processos que lhe estão associados, podendo dizer-se que é um produto que viaja quase sem intermediários, do produtor até ao consumidor final. Com a passagem do formato analógico para o formato digital, vimos os caracteres móveis da imprensa de Gutenberg, as máquinas de escrever e os linotipistas passarem a ser coisas do passado, peças de museu, lado a lado com as tabuinhas de barro da escrita cuneiforme dos povos sumérios, ou os livros manuscritos dos monges copistas medievais. No meio desta mutação, apenas sobreviveu o grande armazém dos alfabetos. Mas esta é também uma época em que as imagens querem roubar protagonismo às palavras, com as pinacotecas, os depósitos de imagens, a substituírem-se às bibliotecas, por força da ideia redutora de que uma imagem vale mais do que mil palavras, quando a verdade é que palavras e imagens continuam a ser expressões complementares uma da outra. Com a imprensa a ser mais visual do que escrita, caindo esta em acentuado declínio, o cidadão comum virou-se para os “blogs” e as redes sociais. Se é um facto que com aquela erupção nunca se escreveu tanto, também  é verdade que a qualidade foi desprezada e não acompanhou o crescimento, dando razão a quem diz que continuamos a ter uma necessidade desenfreada de escrever, mesmo que sejam apenas banalidades, carregadas de paupérrima sintaxe e erros de ortografia. No quadro actual, o nível de exigência é tão reduzido, que apenas 10% dos conteúdos apresentam alguma densidade, ao passo que os restantes 90% não passam de detritos e resíduos descartáveis, sem vigor nem espessura, provocando a erosão a nível comunicacional.

Mas, como diz o adágio, não é possível ter sol na eira e chuva no nabal. Se a democratização dos meios de comunicação trouxe meio mundo para o exercício da escrita, também acabou por arrastar a escrita para terrenos inseguros, e não serão os écrans tácteis, as novas gerações de microchips ou o último grito em gadgets que irão corrigir aquilo que está nas nossas mãos fazer mudar de rumo. Temos que ser tolerantes nas nossas avaliações e comedidos nas nossas exigências, pois não será a refrear o apetite pela escrevinhação atabalhoada dos frequentadores do ciberespaço, que vai passar a aparecer diariamente um prémio Nobel ou um Pulitzer em cada esquina. Sendo as coisas como são, e porque as redes sociais e os blogs não são os locais mais vocacionados para produzir literatura, cabe-nos contribuir, o melhor que soubermos e com a melhor das intenções, para estimular esta infatigável e interminável aventura da escrita, pois é ela que permite manter vivos os sentimentos, ideias, criatividade, informação e conhecimento, elementos essenciais para que nos tornemos mais sábios e não nos desentendamos.

Comentários