O LEOPARDO


Em Março de 2007, escrevi no meu blog O ESCREVINHADOR o seguinte:

Há filmes que não me canso de rever. O Leopardo (Il Gattopardo), de Luchino Visconti (1906 - 1976), foi coisa que me fez salivar durante muitos anos, limitando-me a revê-lo nos fogos-fátuos que persistiam na minha memória, e de que só agora me consegui desedentar, com a recente edição em DVD. Baseado na obra homónima de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, descreve os momentos mais conturbados da vida de uma família rural da aristocracia siciliana, dando especial atenção ao seu patriarca, o Príncipe Don Fabrizio De Salina (Burt Lancaster). O tempo é o do Risorgimento Italiano, ocorrido à volta de 1860, aquando do levantamento do guerrilheiro José Garibaldi, cuja revolta conduziu à unificação italiana. A pessoa de Garibaldi está ausente do filme, mas estão sempre omnipresentes os temores que desperta. Toda a Itália estava em ebulição, em mudança. Uma aristocracia latifundiária, mas quase falida, perdia terreno para uma burguesia inculta, meia labrega, mas patriota, endinheirada e cheia de iniciativa. À desintegração das grandes famílias sucedia-se a ascensão das classes médias. O filme é marcado, desde o início, por uma frase que fica a latejar até ao fim: “algo terá que mudar para que tudo fique na mesma". Quer isto dizer que no turbilhão das revoluções, mudar a forma para que o conteúdo permaneça o mesmo, é sempre o desejo oculto de quem está na eminência de perder poder, regalias e privilégios. O príncipe De Salina, embora aristocrata, era um homem com ideias liberais, logo já não era propriamente um exemplar puro e duro dos tempos antigos, mas também não estava preparado para aceitar as mudanças que aí vinham. Era um príncipe, as ancestrais fidelidades e a sua dignidade falavam mais alto. Estava na fronteira entre os dois mundos, um que sucumbia e outro que despontava. Vivia de corpo inteiro as rupturas políticas e a sua decadência como classe dominante. Consciente do que se passava, via nos compromissos com os vencedores, um adiamento da queda da sua classe. O oportunismo, a versatilidade e o disfarce eram atributos que não tinham lugar no seu modo de vida. Mas esses novos tempos, continuavam a necessitar do envolvimento da fidalguia, para assumirem uma imagem de credibilidade. Portanto, acenam-lhe com um compensador lugar de senador, que ele acaba por rejeitar. Tem princípios, não aceita fazer batota, logo não entra no jogo. Entre o desertar e ficar, escolhe ficar. Como ele próprio diz, aquele que foi leopardo não pode tornar-se chacal. A sua decência não tem preço, não é negociável. Toda a sua energia vai então convergir para retardar o seu próprio eclipse, estabelecendo laços familiares com a nova sociedade emergente, para o que promove o casamento do seu sobrinho Tancredi (Alain Delon) com Angélica (Cláudia Cardinale), a filha de um rico comerciante com ambições políticas. Tancredi, um jovem bonito, simpático e ambicioso, um oportunista que faz alianças com as pessoas que lhe são mais convenientes, que muda de barricada, faz e desfaz alianças consoante os ventos sopram. O baile de apresentação de Angélica à sociedade, é o corolário final do desencanto de Don Fabrizio, a passagem de testemunho de um poder que já não lhe pertence, o crepúsculo de uma era. E aquela valsa em que ele rodopia nos braços da bela Angélica, não é mais do que a confrontação da frescura e juventude que desponta, com a sua velhice que se torna inevitável. Baile que na sua parte final, é a mais expressiva e clarividente imagem do declínio da alta sociedade, que dança, come, bebe, trocando cortesias e futilidades, numa patética exibição da sua perfeita inutilidade, mas em que cada família continua a levar o seu próprio calhandro, recusando misturar a sua urina e excrementos, com a dos outros fidalgos que participaram na festa.


Pelo meio há muitos outros momentos únicos de cinema. Como a chegada e a recepção à família De Salina a Donnafugata, para a sua habitual estadia anual, os cumprimentos das forças vivas e a austeridade da missa, que é um incomparável fresco cinematográfico. Os sinais da cruz e as rezas da beata princesa De Salina, entre duas carícias do príncipe. Os lamentos do príncipe, quando diz que tem sete filhos e nunca conseguiu ver o umbigo da mulher. O príncipe a aconselhar o padre a tomar um banho de vez em quando, e o padre a tentar disfarçar, tentando manter o seu ascendente no seio da família. A perseguição e o jogo de escondidas, recheado de volúpia e sedução, entre Tancredi e Angélica, pelas salas abandonadas do palácio. Mais a rusticidade das pessoas, a atmosfera, o vento, o pó, as paisagens violentas, as sombras, as cores fortes e as transparências da luz siciliana, tão envolvente e arrebatadora. Mais a banda sonora irrepreensível de Nino Rota. Mais os pincéis e a paleta de um Luchino Visconti, único na história do cinema. Como disse no início deste apontamento, há filmes que não me canso de rever. Este é cinema com letra maiúscula. O Leopardo é a minha "via-sacra" cinematográfica. 

NOTA ADICIONAL em Outubro de 2018

Em 2007, quando escrevi aquelas linhas sobre o filme, havia pouco tempo desde que lera o livro de Tomasi de Lampedusa, muito embora o tivesse mantido intocado na estante, desde 1974. A curiosidade sobre o filme sobrepusera-se à que tinha sobre o livro que lhe dera origem. Estabelecidas as diferenças que separam a expressão literária da expressão fílmica, concluí que o livro é tão perfeito quanto o filme, e que não foi mero fruto do acaso que Luchino Visconti tivesse trazido para a sétima arte a obra literária de Giusepe Tomasi de Lampedusa. Embora comunista convicto e com uma sólida reputação no meio cinematográfico, o aristocrata Luchino Visconti, conde de Lonate Pozzolo e descendente da nobre família milanesa dos Visconti, é natural que tenha sentido grande atracção pela obra autobiográfica de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), também ele um velho aristocrata, filho do príncipe de Lampedusa. O seu romance "O Leopardo" (Il gattopardo), baseado em histórias da sua família, e, em particular, na vida de um seu antepassado que viveu nos anos cruciais do Risorgimento, no reinado de Francisco II das Duas Sicílias, nunca foi publicado em vida do autor, devido à sistemática recusa por parte dos editores. Só postumamente, em 1958, "Il gattopardo" chegou às livrarias, para logo atingir a tiragem de meio milhão de exemplares, coisa que em Itália não se verificava há um século, e ter sido galardoado com  o "Prémio Strega". O nome do romance teve origem no brasão da família Tommasi, e é assim referido no romance: "Nós fomos os Leopardos, os Leões; quem nos substituirá serão os pequenos chacais, as hienas; e todos - Leopardos, chacais e ovelhas - continuaremos a acreditar que somos o sal da terra.". E talvez o trecho mais memorável do livro seja o discurso do sobrinho de Don Fabrizio, Tancredi, o arruinado, simpático e oportunista príncipe de Falconeri, incitando o seu tio, céptico e conservador, a abandonar a sua lealdade aos Bourbons do Reino das Duas Sicílias e a aliar-se aos Sabóia, quando diz: "A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles irão submeter-nos à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que alguma coisa mude”. O instinto de conservação pessoal, da sua família e da sua classe, leva-o a aceitar refazer alianças, deitando para trás das costas ancestrais repugnâncias pelos labregos endinheirados da burguesia em ascenção. 


Foi a esse mundo nostálgico que sucumbia aos novos tempos que despontavam, fruto da unificação italiana em marcha, com todas as tragédias e rupturas, próprias da derrocada de uma sociedade senhorial, ultrapassada pelo curso da História, que Luchino Visconti, ele que se considerava um homem fora do seu tempo, foi colher a matéria prima para a sua obra-prima cinematográfica. De forma muito inteligente, o filme termina na página 169 de um romance que ainda se alonga por mais 30 páginas, até à morte de Don Fabrizio, mas que já não são essenciais ao filme, para transmitir a mensagem central. O Leopardo ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1963, e é talvez o filme mais pessoal de Visconti onde, passo a passo, de forma apaixonada e amargurada, entre ruínas e grandes pausas, o realizador conjugou todo o processo de decadência de uma classe social, matéria em que foi grande especialista, e que marcou de forma indelével quase toda a obra viscontiana.

Título: O Leopardo  (Il Gattopardo)
Realizador: Luchino Visconti 
Género: Drama, Histórico
Baseado no romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa
Ano: 1963
Actores: Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale...

Comentários