O Ovo de Colombo



«Todos os meios são bons quando são eficazes»
Jean-Paul Sartre, in As Mãos Sujas

O Vieira mora no extremo de um conjunto de moradias em banda, separadas entre si por muretes com metro e meio de altura e com um espaço ajardinado nas traseiras. O proprietário da moradia contígua à sua tem um cão, que reina impante e todo-poderoso na sua zona ajardinada. Com traços de raça Serra da Estrela, é um cão muito especial. Não pára um minuto calado. Ladra a tudo o que mexe e não se mexe. Ladra aos pássaros, ladra às nuvens, ladra à janela que se abre, à porta que se fecha, às risadas dos miúdos, às paredes brancas dos muretes, à mosca que esvoaça, à roupa estendida a secar, às fumarolas que saem das chaminés, aos pingos de chuva, ao silêncio, à música de se escoa de uma casa ou de outra, à lua, ao sol, às estrelas, ao toque das campainhas, mas sobretudo, ladra contínua e desalmadamente, sempre que vê o Vieira ou a sua mulher Virgínia assomarem a qualquer uma das suas janelas, ou detecta a sua presença no perímetro do jardim. Diz o Vieira que se fosse apenas a presença deles que desencadeasse o mau humor do mastim, a reacção ainda era compreensível e suportável, pois é isso que se espera de um cão de guarda, minimamente competente. Mas não era este o caso. O problema  tinha que ver com aquela constante e inexplicável trovoada que se abatia naquela pacífica rua, por tudo e por nada, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, e que atordoava o ser humano mais resistente. Ao fim do dia quando os donos chegavam a casa, redobrava a cadência do ladrar, e não havia carícias, comida ou bebida que o calassem. Como não gostava de ser apedrejado, apenas as quedas de granizo o levavam a recolher-se à casota e ao silêncio, porém, as saraivadas são fenómenos meteorológicos pouco frequentes.

Já sem falar na perturbação do sono, as modestas e pacatas actividades de ler e ouvir música tinham-se tornado tarefas impossíveis. Não estava nos seus hábitos ouvir a Missa Longa de Mozart com a cabeça entaipada nos auscultadores, ou ler os Contos Irónicos de Heinrich Böll com cotonetes metidas nos ouvidos. Com a qualidade de vida da sua reforma a deteriorar-se, começando a insinuar-se o princípio de uma sombria depressão, certo dia o Vieira decidiu-se ir bater à porta dos vizinhos para queixar-se do desassossego e da má vizinhança. Foi a senhora que o atendeu, e que ouviu calma e pacientemente as reclamações, com expressão pesarosa, dizendo depois que ia chamar o marido. Lá atrás, nas traseiras da casa, o cão duplicou  os decibéis, ao mesmo tempo que o dono apareceu à soleira da porta, de semblante carregado, para ouvir a repetição das angústias e reclamações, e atalhando de seguida: 
- Olhe, o cão é meu, está dentro do que é meu, não morde nem faz estragos a ninguém, tem todas as vacinas e licenças em dia, e quem não está bem, muda-se. Acabou-se a conversa e passe bem! E sem mais, fechou a porta na cara do Vieira com acintoso desdém.

- Bem, para grandes males, grandes remédios. Acho que vou chamar a polícia, concluiu decidido o Vieira. Destroçado e com os nervos esfrangalhados, telefonou para a esquadra e pediu a intervenção da autoridade. Quando os agentes da polícia chegaram à rua, o cão parou de ladrar e, acontecimento raramente visto, foi-se aninhar dentro da casota. Os agentes estiveram por ali no jardim durante uma boa meia hora, tempo durante o qual o cão se remeteu a um grande e respeitoso silêncio. Não tugiu nem mugiu, acabando o Vieira por ficar desamparado e mal visto, ouvindo dos desagradados e impacientes agentes, algumas recomendações, tais como as de recorrer à autoridade apenas em situações que o justificassem. Pelos vistos, disseram eles, o cão não gerava a tal poluição sonora e mau ambiente permanente de que ele se queixava. Os agentes despediram-se, meteram-se no carro e desandaram. O Vieira ficou estarrecido. Não tinham passado ainda cinco minutos quando recomeçou o tormento. 

Se calhava estar longe de casa, por exemplo, numa ida ao café, era nesses momentos de desencantado alívio que o Vieira se surpreendia a divagar: 
- Se não é possível escolher os vizinhos nem evitá-los, a solução ideal seria dispor de uma propriedade tão grande que os colocasse fora do nosso alcance. E a Virgínia concordava. 
O Vieira decidiu então transferir o seu quarto de dormir para o quarto das visitas, que ficava na parte da frente da moradia, mas pouco ou nada beneficiou com a mudança. O ladrar ribombante e persistente do cão ultrapassava todas as barreiras. Mandou substituir a caixilharia das janelas para vidros duplos, mas o martírio persistia. Houve até quem o aconselhasse a insonorizar a moradia, forrando as paredes, tectos e soalhos com painéis de corticite, solução que o Vieira rejeitou. Queria acabar os seus dias numa casa, não num ataúde ou num mausoléu à prova de som. Outros sugeriram que mudasse de casa. Mudar de casa, apenas por causa do ladrar de um cão?  Nem pensar! Isso tinha um travo amargo, era como lançar a toalha ao chão, soava a derrota de uma guerra de desgaste, sem pretexto e não declarada, e tudo por causa da merda de um cão. Um dia pegou na mangueira da rega e pregou um banho forçado ao animal, quando ele deambulava a exercitar a garganta. O resultado foi aquele lançar-se resolutamente ao murete, com um ladrar de rasgar tímpanos, a espumar de raiva e com os dentes arreganhados, por pouco quase conseguindo galgar para o seu jardim, e sabe-se lá que tragédia viria depois.

Mal conseguir dormir com o ladrar do animal, a martelar-lhe permanentemente os ouvidos durante todo o dia, começou a tornar-se uma obsessão, e em desespero de causa, começaram a insinuar-se no seu espírito alguns instintos assassinos. 
- Dar um tiro no cão, não, isso não! Faz muito barulho.
- Envenenar o cão, sei lá, porque não? Falou à Virgínia naquele expediente e ela rejeitou-o. Tinha que haver outra solução, o problema tinha mais a ver com a insensibilidade e nula cooperação dos donos, do que com a natureza pouco civilizada do animal, acrescentou ela. O Vieira foi colher informações, e apoio para o problema. De uma vizinhança que mal conhecia, apenas colheu indiferença. Lá estavam os brandos costumes! Só a dona Berta foi quem mais se adiantou, concordando que a má conduta do cão era horrível e desagradável, porém, havia que contar que o dono, era um estafermo da mesma raça do bicho, pessoa influente e temida, sócio de um gabinete de advogados, com muitos conhecimentos e clientes de grossos cabedais, e que ninguém se atrevia a confrontá-lo. 
- Mas olhe, nesse conflito que tem com aquele insuportável saco de pulgas, já sabe, tem todo o meu apoio, retorquiu a dona Berta, a chocalhar as pulseiras, a despachar o Vieira e o assunto.

 Por ali nada feito. Como estava fora de questão passar o resto da vida com tampões de algodão nos ouvidos, o Vieira voltou a pensar em instalar a sua câmara no tripé e gravar um vídeo das 24 horas de desassossego, indo depois exibi-lo na esquadra, como prova efectiva das suas queixas. 
- É escusado, não resolve! pensou com os seus botões, em tribunal não serve de prova, apenas o testemunho da autoridade pode alterar o curso das coisas, mas quando eles cá chegam, já sabemos, o gajo cala-se. E foi quando chegou a este ponto de raciocínio que algo faiscou no seu espírito, levando-o a repetir num murmúrio aquela expressão "quando eles cá chegam o gajo cala-se", receoso que a frágil ideia se volatilizasse. Acreditou então ter sido tocado por um sopro de inspiração. 
- Ora esta, como é que eu nunca pensei nisto? Impaciente, esperou que a Virgínia chegasse das compras e depois contou-lhe o que descobrira. 
- O que achas da ideia? Perguntou no fim.
- Não sei, parece o "ovo de colombo". Mas olha, não custa nada experimentar, talvez resulte, já estou por tudo, concluiu ela, entre incrédula e surpreendida.

No dia seguinte o Vieira e a Virgínia foram a um armazém de velharias e quinquilharias para os lados do Prior Velho e compraram um velho manequim articulado e uma farda completa de polícia, com boné e tudo. No regresso a casa o boneco foi vestido e calçado a preceito, pintaram-lhe umas feições com um par de olhos assustadores, aplicaram-lhe uma peruca e um bigode e levaram-no para o patamar da escada exterior de acesso ao jardim das traseiras, pois embora a ideia do Vieira tivesse pernas para andar, o manequim recusava-se a fazer isso sem ajuda. Puseram-no numa pose entre o arrogante e o desafiadora, instalaram-no bem à vista do cão, apoiado ao varandim de ferro forjado, voltaram para dentro de casa e aguardaram pelo resultado. O cão olhou, largou um tímido e angustiado latido, meteu o rabo entre as pernas e calou-se. Até hoje.

Autor: F.Torres
2015 Junho

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