As Três Chaves


Era uma sala sem janelas e com quatro portas. Uma por onde se entrava e mais três, todas iguais, e que estavam fechadas. No centro havia uma mesa e em cima dela três chaves, todas elas iguais, excepto no recorte dos dentes. Do tecto pendia uma lâmpada que iluminava a sala. Havia duas cadeiras. Numa estava sentado o Amadeu que tinha vindo a uma entrevista de emprego, e na outra o homem que parecia um "carregador de pianos", um cinquentão com aspecto descuidado, barba por fazer, dedos grossos, camisa com manchas de suor e calças seguras com suspensórios, e curiosamente, com uma voz suave e pronúncia bem recortada. Estavam ali há perto de duas horas, e se havia alguma coisa para resolver, parecia que isso ainda ia demorar.
- Respondi ao anúncio mas afinal isto, em vez de ser uma entrevista, parece-se mais com um sequestro, queixou-se o Amadeu.
- O anúncio só foi omisso numa coisa; uma vez entrada aquela porta, já não se pode sair por ela. Tem que se escolher uma dessas chaves, que abrirá uma daquelas três portas, que leva à saída, e onde também não se pode voltar para trás. E o "carregador" apontou para as chaves e para as portas.
- No anúncio prometiam uma mudança de vida, mas afinal tudo isto não passa de três grandes incertezas, uma espécie de roleta russa disfarçada de máquina do tempo, atalhou o Amadeu.
- Não enganamos ninguém, respondeu o "carregador". Nem estamos a mentir quando dizemos que a vida dos candidatos tem grandes probabilidades de mudar, apenas pedimos em troca, coragem e vontade de correr alguns riscos. Há três portas e duas delas enviam o candidato para outra época, que tanto pode ser o Passado como o Futuro. Só não estamos a dizer como o fazemos.
- Ora, ora! Uma porta abre-se para o Passado, outra para o Futuro, e só a que nos mantém no Presente não oferece qualquer risco. A tal mudança de vida que o anúncio promete, tanto no Passado como no Futuro, não trás selo de garantia nem se pode reclamar, logo é uma incógnita, insistiu o Amadeu.
- É verdade! De facto, só temos reclamações de quem por um golpe de sorte, permaneceu no Presente. E quando voltam para reclamar, normalmente o que pretendem é recandidatar-se. Por alguma razão dizemos que os candidatos têm grandes probabilidades de mudar de vida, retorquiu o "carregador". Somos uma alternativa às depressões e às perdas de sentido da vida. Trata-se de a refazer noutro tempo que não este. Pode-se recuar ao tempo das Cruzadas ou ir colonizar planetas em Alpha do Centauro, mas o que os candidatos vierem a ser nessas épocas e nesses lugares, estará a um alcance diferente das oportunidades que o Presente lhes oferece. Quando nascemos, não escolhemos os pais, nem a época nem o local. Com este jogo pode-se mudar isso, mas há que contar sempre com uma certa dose de sorte, acrescentou o "carregador".
- Mas a sorte é apenas uma sucessão de acasos que não controlamos, uns favoráveis, outros nem por isso, que têm a pretensão de modelar o rumo das nossas vidas, insistiu o Amadeu.
- Bem, de qualquer modo temos que contar com ela, mesmo que ela não conte connosco, ripostou o "carregador".
- E para entrar neste jogo basta escolher uma chave, não é?
- Exacto. Escolhida a chave basta ir experimentar em que porta funciona, e a partir daí os dados estão lançados, rematou o "carregador", com os polegares metidos nos elásticos dos suspensórios e a distendê-los num vaivém cadenciado. 
O Amadeu recostou-se na cadeira, humedeceu os lábios, olhou fixamente a lâmpada do tecto e deixou-se ficar uns largos minutos a meditar, a pesar os prós e os contras. O "carregador" observava-o mas nada dizia, apenas observava e esperava. Não havia pressa.
- Bem, se não posso desistir, apenas me resta ter a sorte de escolher a chave da porta do Presente, para suspirar de alívio e não ter que me arrepender, atalhou o Amadeu, ao mesmo tempo que se levantou e começou a correr a vista pelas três chaves. Escolheu a do meio. Mirou-a, cheirou-a, tomou-lhe o peso, beijou-a, foi até à porta do centro e experimentou-a na ranhura. Não abriu. Experimentou-a na porta do lado direito e esta abriu-se. À sua frente tinha um longo corredor para percorrer, que certamente iria dar a algum lugar em alguma época. 
- Suspeito que não tive sorte nenhuma, lamentou-se o Amadeu. Olhou para trás, fez um aceno ao "carregador" que retribuiu o cumprimento, e entrou, ao mesmo tempo que ouviu a porta fechar-se atrás de si. Tal como em tempos dissera Júlio César ao atravessar o Rubicão com as suas legiões, e agora o repetira o "carregador de pianos", os dados estavam lançados.

Novembro 2019

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