O Inferno na Terra
Os artigos que o padre Gonçalo Portocarrero de Almada habitualmente
escreve no jornal OBSERVADOR, têm o condão de me deixar motivado e em alvoroço,
pois são sempre uma fonte de inspiração para tecer alguns comentários sobre as
curiosas teses que ele faz questão de trazer para o domínio público.
A última versava sobre a Santa Inquisição, essa entidade gerada no
seio da Igreja Católica Apostólica Romana, como prolongamento das Cruzadas, que
esteve activa entre 1250 e 1820, e que tinha por função extirpar da religião
católica todas as heresias e perversões que a pudessem infectar, custasse o que
custasse, doesse a quem doesse, recorrendo à prisão, tortura e execuções, pelos
quatro cantos do planeta. Sem negar que tivessem sido cometidos excessos, pois
entre os padres também há gente capaz de tudo, o padre Gonçalo, no entanto,
afiança que a Inquisição foi um exemplo de humanidade, probidade e excelsa
misericórdia para com os seus sentenciados, limitando-se a julgar e a fazer
justiça. A Inquisição não aplicava apenas condenações; sublinha ele que também
havia indultos e absolvições, e caso curioso, até havia situações em que os
condenados obtinham a permissão para irem de férias ou darem assistência à
família, regressando depois à masmorra para completarem a pena. Casos houve em
que o condenado foi dispensado do cumprimento da pena, por motivos de doença, e
até aconteceu ter havido obras nos cárceres e enxovias, para receberem mais
arejamento e serem melhoradas as condições sanitárias, coisa que os
"hóspedes", certamente muito apreciaram. Chamar a isto uma Inquisição
desumana, e que espalhava o terror por onde passasse, não cabe na cabeça de
ninguém bem-intencionado, exclama o padre Gonçalo. Só faltou dizer que toda a
gente ansiava ser objecto das atenções e convocada pela Santa Inquisição, a fim
de passar pelas suas instalações durante uns tempos, como forma de purificação.
A propósito de instrumentos de tortura, lembro-me de ter visitado há
uns anos, no Palácio Galveias, em Lisboa, uma exposição de instrumentos de
tortura utilizados pela Inquisição, com os quais eram "acariciados"
os detidos sob a sua custódia. Havia-os para todos os fins, sendo descritos com
todos os pormenores, os efeitos que cada um deles produzia no corpo do
indivíduo sob tortura, tudo com o objectivo de extrair uma confissão, fosse ela
falsa ou verdadeira. Se quisermos ter uma visão do inferno, basta imaginarmos
aqueles objectos a serem manipulados pelos torcionários, nas caves da
Inquisição, onde os berros e gritos dos supliciados eram abafados pelas
litanias e interrogatórios dos frades, e a espessura das paredes. Aquela visita
foi uma experiência única, embora o meu estômago se tenha queixado. Saí de lá
com a noção, apenas aproximada, até onde pode ir o sadismo e a abjecção humana.
Enfim, tudo pormenores descartáveis, se os fins justificam os meios e a
intenção era assegurar a pureza doutrinária e a salvação das almas.
Quando os réprobos eram torturados havia sempre uma razão para isso:
contrariando o actual princípio da presunção de inocência, eles eram sempre
culpados à partida, e se insistiam em não confessar, existissem ou não, os tais
pecados e abominações, a tortura era o instrumento de eleição para forçar a
confissão e justificar a condenação, nunca passando pela cabeça dos
inquisidores que o réu pudesse estar inocente. No seu piedoso papel de administradores
da pureza da fé, os tribunais da Inquisição não matavam ninguém; apenas
julgavam e lavravam a condenação à morte, caso o crime o justificasse. Os
condenados eram depois entregues ao "braço secular", a quem competia
levar a cabo as execuções. A Igreja julgava e o Estado matava. Mais expedito e
higiénico não há! Foi com este método que a Inquisição acabou por se tornar
escola, onde todas as polícias políticas que enxamearam a História, foram beber
as suas práticas e ensinamentos. A Inquisição julgava os crimes religiosos, ao
passo que as polícias políticas julgavam os crimes políticos, fechando o cerco
à sociedade civil.
Eu sei que o espírito crítico com que hoje avaliamos a Inquisição, é
substancialmente diferente do espírito que existia naquelas épocas, em que
reinava o temor e o pavor, um espécie de pão nosso de cada dia, imposto por uma
Igreja omnipotente e omnipresente, empenhada em vergar os corpos e os espíritos
à aceitação da palmatória de Deus, destinada a corrigir os devaneios, desvios e
aberrações dos seus cordeiros. Vista sob este prisma, a existência da
Inquisição, afinal, foi tudo uma questão de habituação. Primeiro estranha-se,
depois entranha-se. Por isso é que não me consigo comover com a condescendência
da versão delicodoce do padre Gonçalo, incapaz de ver na actuação da Santa
Inquisição, uma passagem antecipada pelos tormentos do inferno, como vacina
contra as heresias, fantasias e ambiguidades dos fiéis.
Comentários
Enviar um comentário