Comprimidos Para Dormir



O Adelino e o António sempre foram amigos. Eram quase vizinhos, brincaram na mesma rua, andaram na mesma escola primária, fizeram a tropa juntos e só depois a vida os separou, mas não muito. Adelino casou e António não. Adelino tornou-se delegado de propaganda médica de uma multinacional e António empregado de balcão numa loja de ferragens. O facto de terem profissões diferentes não impediu de se continuassem a ver, pelo menos uma vez por semana, no restaurante O Abençoado. Com uma amizade tão duradoura, ninguém diria que eram tudo menos almas gémeas. Adelino vivia para o dia-a-dia, sem outra ambição que ganhar dinheiro, apreciar boa mesa, boas roupas e bons carros, amigo de paródias e de viajar, sempre pronto para festas e churrascadas. Já o modesto António coleccionava outro tipo de riquezas. Era um quase intelectual, autodidacta, amigo de ler e de música, consumidor de concertos, museus e de exposições, de teatro e de cinema, e andava sempre atento a tudo que se passava à sua volta. Com personalidades tão díspares, todos se admiravam que continuassem amigos de pedra e cal. Aos almoços falavam do trabalho. Adelino das suas viagens e visitas que fazia aos consultórios dos médicos, onde demonstrava a excelência das novas especialidades farmacêuticas. António do seu dia-a-dia atrás do balcão, a vender porcas e parafusos, torneiras, dobradiças e fechaduras. Quando o António levava a conversa para algum livro que andava a ler, ou alguma exposição de pintura que visitara, logo o Adelino punha um travão demolidor. - Não insistas, António, já sabes que para mim os quadros só servem para esconder os buracos das paredes e as estátuas para tapar os buracos no chão. Quanto aos livros só servem para decorar as prateleiras das estantes da sala. Para ele, a literatura começava e acabava nos desdobráveis que acompanhavam as embalagens de medicamentos. Literatura prática, dizia ele. Quanto ao teatro, cinema e música não passavam de comprimidos para adormecer.
- Tens que ver o lado prático das coisas, afinal a única coisa que interessa. Qual arte, qual carapuça! - justificava-se o Adelino, do alto da sua arrogância e sabedoria. E o António encolhia os ombros, sorria desconsolado e vingava-se na sobremesa. 

Há coisa de dois anos, enquanto davam conta de uma pratada de mão de vaca com grão, o Adelino contou que o seu tio Gustavo tinha falecido, e ele, como seu herdeiro universal, tinha herdado uma carrada de porcarias que o velhote guardava lá em casa. Uma arca cheia de livros velhos, montanhas de jornais, uma máquina de lavar roupa avariada, um violino cheio de mazelas e com mau aspecto, meia centena de chapéus-de-chuva com falta de varetas, colecções de calendários da Play Boy e muita traquitana, daquela que os velhotes viúvos gostam de acumular. Queixou-se que ia ser uma carga de trabalhos para se livrar da tralha daquela herança, e que nas próximas semanas não se encontrariam.

Dois meses depois, voltaram a almoçar. Estavam atracados a umas costeletas do lombo, quando o Adelino formulou um insólito pedido:
- Ó António, isto tem que ver com a tua especialidade; preciso que me faças uma lista com uma centena de livros da literatura universal. Só quero obras-primas! O António ficou atónito, paralisado entre duas garfadas.
- Estarei a ouvir bem? Tu o Adelino, queres mesmo uma lista de obras-primas da literatura?
- Isso mesmo, nem mais, nem ontem - respondeu o outro. - Eu depois explico-te...
Duas semanas depois, despachado um bacalhau com natas, e a bebericarem o café, o António, ainda um bocado incrédulo com a viragem que o Adelino fizera em relação ao seu habitual desprezo por tudo o que tivesse a ver com livros, mostrou-lhe a lista pedida, tão honesta quanto possível, que ia desde o "A" de Anton Tchekhov até ao "Z" de Zola, passando por Dickens, Camões, Jane Austen, Heminguay, Shakespeare, Cervantes, Virginia Woolf, Tolstoi, Homero e tantos outros.
– Serve perfeitamente - acrescentou o Adelino, depois de folhear a lista, sem conferir nem fazer perguntas. - Disto percebes tu, camarada!

Passaram perto de quatro meses e certa tarde o António recebeu um telefonema do Adelino.
– No Domingo vais almoçar a minha casa. Quero mostrar-te uma coisa. Vou-te buscar às onze, depois da missa.
- Não sabia que agora ias à missa - exclamou o António.
- Vou sim. É um um evento marcadamente social. Só tem vantagens. Vemos e somos vistos. Em certos casos é a alma do negócio - explicou o Adelino.
– É uma novidade para mim. Fica combinado, ás onze horas vens buscar-me - respondeu o António. O Adelino e a Gina tinham feito uma viagem ao Canadá, oferecida pelo laboratório, e talvez quisessem mostrar-lhe as fotografias da viagem, pensou ele.

Chegou o Domingo. A Gina estava a preparar um arroz de marisco, e enquanto o almoço não era servido, o Adelino levou o António até à sala. Na estante, primorosamente arrumados, estava perto de uma centena de livros, ricamente encadernados, com lombadas gravadas a ouro, onde se podiam ler todos os títulos e autores que constavam da lista fornecida pelo António, uns tempos atrás. O António estava boquiaberto e o Adelino rebolava-se de prazer e contentamento.
– Pois bem, olha para esta solução que eu encontrei, e da qual foste cúmplice, para dar utilidade àquela velha livralhada do tio Gustavo. Pois bem, serviram de miolo para estas belezas de encadernações em carneira, com nervuras e relêvos, e com os títulos e autores gravados a ouro, que me custaram os olhos da cara. O António ainda esboçou pegar num dos livros alinhados na estante, mas o Adelino não deixou.
- Se pegares no livro e o abrires apanhas uma decepção! O miolo de pechisbeque não coincide com a lombada. Meu caro, isto é só para dar um toque de distinção ao ambiente. O mundo está cheio de imitações e falsificações. Não são para levar a sério, apenas cumprem objectivos.
O António estava sem palavras, queria abrir a boca, dizer qualquer coisa, mas as ideias estavam bloqueadas.
– Eram então estes os romances de meia-tigela do tio Gustavo? - balbuciou o António.
– Claro, com um toque de magia transformaram-se em obras-primas da literatura universal - atalhou o Adelino.
Para desviar a conversa o António lembrou-se do violino.
– Bem, para os livros encontraste esta solução, e o violino, que lhe fizeste?
- Ora, era um cavaco sem cordas, a madeira tinha mau aspecto, o estojo estava meio a desfazer-se e o veludo do forro estava todo roído das traças. Dei-lhe uma dúzia de marteladas e serviu para acender a lareira – explicou o Adelino com ar de desdém.
- Nem foste saber se valia alguma coisa? - perguntou o António.
- Nada, aquilo, no estado em que estava, não valia um tostão furado. Vai por mim que eu sei o que digo. Olha, sobrou isto que estava colado lá dentro. Procurou algo na prateleira da cristaleira, e estendeu para o António uma pequena tira de papel amarelecido. Era mais pequena que um bilhete de autocarro e estava impressa com caracteres negros onde se lia: "Antonius Stradivarius Cremonenfis Faciebat  Anno 1716", seguida da imagem do selo do autor, o que significava que o violino fora construído há trezentos anos, por António Stradivarius de Cremona, um dos mais famosos construtores de instrumentos de cordas de todos os tempos. Os violinos saídos das suas oficinas, e que entretanto conseguiram chegar até nós, valem hoje, consoante o seu estado de conservação e outros factores, muitas dezenas de milhões de euros.
– Venham para a mesa que o arroz arrefece e perde a graça - gritou a Gina lá dos confins da casa.
– Deixa isso e vamos almoçar -  acrescentou o Adelino, ao mesmo tempo que o António perdia o apetite e sentia um arrepio de desconforto a percorrer-lhe as costas.

Primeiro os livros, agora o violino. De rajada e em escassos quinze minutos, o Adelino tinha confessado a frio e sem gaguejar, uma “fraude” e um “assassínio”. Para o António, dois choques daquela intensidade no mesmo dia, eram demais para ele. Quedou-se em silêncio, a engolir em seco e com o estômago às voltas, a revirar a pequena etiqueta entre os dedos, sem saber o que dizer ao Adelino. Se descrever-lhe a grandeza do "crime" que tinha cometido com o violino, ou se era preferível deixar tudo como estava, na santa paz da ignorância e das cinzas arrefecidas na lareira. Para a visão prática do Adelino, valesse o que valesse, o velho e desprezível violino do tio Gustavo, nunca deixaria de ser um instrumento apropriado para fabricar comprimidos contra a insónia.


Julho 2019

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