Ambiguidades do Nosso Tempo


Há uma ideia que vai abrindo caminho, gerando descontentamento generalizado e abstencionismo crónico junto do eleitorado. Essa ideia sustenta que os políticos dos partidos que partilham a área do poder (no caso de Portugal, o PS, PSD e CDS-PP), não são pessoas de bem, pois o que dizem não coincide com o que pensam, nem o que dizem e prometem, coincide com o que fazem quando governam, isto quando não se dá o caso de fazerem exactamente o contrario do que prometeram. Em resumo: são mentirosos. Para agravar este descrédito, e já não falando da corrupção, há que juntar ainda o uso indevido que fazem dos cargos, mais em seu benefício pessoal e do seu círculo de amizades e respectivos interesses, do que em benefício da colectividade. Oriundas dos blogs e das redes sociais, onde há quem se dedique à manipulação, desinformação e divulgação de notícias falsas, estes materiais passaram a ter um peso determinante na formação da opinião pública e na destruição de reputações, já que são os próprios meios de comunicação social tradicionais que, sem qualquer filtro de autenticidade, lhes dão cobertura. Acresce que esta caracterização da classe política acaba por se generalizar, propagando o descrédito sobre todos os políticos em geral, não poupando os membros de outros partidos que nunca partilharam a área do poder, mas que acabam por ser arrastados e receberem o mesmo tipo de desconsideração, sendo envolvidos na mesma vaga de antipatia contra as organizações políticas tradicionais.

Nos corredores, nas conversas de café, entre os solavancos dos transportes públicos, pelas redes socais e um pouco por todo o lado, vai-se ouvindo que “os políticos e a política portuguesa precisam de uma limpeza geral”, que “o Salazar faz muita falta” e também aquele patético “volta Salazar que estás perdoado”, como se 48 anos de fascismo pudessem ser branqueados com um passe de magia, ou se negue com veemência e impávido descaramento, que aquele sinistro período, tenha sido um regime repressivo de direita. Há até, pasme-se, quem garanta que Salazar, absorvido nos afazeres e na beatífica solidão do seu gabinete de trabalho, desconhecia o que cá fora se passava, e que o seu conhecimento do mundo exterior, acabava nas capoeiras de galinhas que existiam no jardim da residência de São Bento. Quem acredita nisto, ou nunca viveu debaixo do jugo do fascismo do Estado Novo, ou se viveu, dele colheu benefícios, ou então, depressa esqueceu. No entanto, é bom que se saiba que estes argumentos não são novos, e se passarmos os olhos pela História contemporânea, muitos deles já deram várias voltas ao sistema solar. Recentemente, em França, Emmanuel Macron, providenciando uma homenagem, também tentou branquear a imagem do marechal Philippe Pétain, aquele que sob ocupação nazi do III Reich, chefiou o governo colaboracionista da França, durante a II Guerra Mundial.

Aponta-se também que o Salazar foi um político de grandes realizações, mas convém acautelar que o ditador nunca foi criticado pelos seus opositores, por ter levado a cabo obras para equipar o país com infra-estruturas, muito embora saibamos que muitas dessas realizações, sendo necessárias, também funcionavam como forma de propaganda, interna e externa do regime. Faziam-se obras e pouco mais se dava aos portugueses, que viam as suas débeis condições de vida, quase reduzidas ao mínimo. O Estado Novo assentava basicamente nos alicerces de um fascismo beato e provinciano, produto da única e exclusiva vontade do ditador, líder carismático que se fazia rodear de meticulosos capatazes, escolhidos a dedo, que punham em prática a sua paranóia mesquinha e provinciana, conduzindo o país para um Estado policial embrutecido, servido por legionários, “pides” e informadores, refastelado no semi-analfabetismo, isolado do convívio dos outros povos e outras ideias, com a comunicação social e a cultura sequestradas e censuradas, fechado às críticas e à discussão, sem escrutínio, indiferente aos tempos que anunciavam o fim do colonialismo, envolvendo o país numa guerra colonial em três frentes, durante treze anos e condenada ao insucesso, com os opositores despejados para o exílio ou para as prisões, e o povo apenas alimentado pelas condições mínimas, que ele Salazar, no seu autismo canhestro e provinciano, achava serem suficientes para os portugueses (sobre)viverem. A irónica expressão popular, “pobretes mas alegretes”, caricaturava bem o generalizado estado de miséria do povo e do país.

Um descontentamento actual que aprecie um regresso a este tenebroso estado de coisas, mais do que leviano masoquismo, é algo que não cabe na cabeça de uma pessoa com três dedos de testa, porém, este desagrado torna-se o terreno ideal para germinarem os políticos populistas e os chamados "movimentos inorgânicos", os quais, indo ao encontro daquilo que a grande massa de descontentes gosta de ouvir, se tornam seus porta-vozes, pondo em causa a natureza do regime democrático, sugerindo a sua mudança radical, e com isso propondo o "saneamento" da classe política e de todo o aparelho da administração, através de medidas rotuladas de "revolucionárias", mas que na verdade são a rampa deslizante para novos tipos de autoritarismo e o embrião de novas ditaduras. Quando Carlos Esperança diz que em Portugal “a direita representa um terço das intenções de voto, mas tem enorme poder nos sectores económicos e financeiros, na comunicação social e aparelho de Estado, nos bombeiros e IPSSs, nas fundações e Ordens profissionais e, pasme-se, nos sindicatos selvagens que emergem através das Ordens”, isso significa essa mesma direita tudo faz para alargar a sua influência e superar aquele terço das intenções de voto, infiltrando-se mesmo nos tais movimentos “espontâneos” que começam a ganhar forma, um pouco por todo o lado.

Se a actual constituição da república oferece todas as garantias para que o regime democrático e o estado de direito se articulem e funcionem, não é o regime que está a precisar de ser mudado - embora nalguns aspectos precise de ser ajustado e aperfeiçoado -, mas sim alguns dos protagonistas da política, e os mecanismos que permitem o seu andamento em "roda livre", sem responsabilização nem sanções. Lançar para o ar que “a política portuguesa precisa de uma limpeza geral”, não é uma solução mas apenas um chavão para seduzir e provocar rupturas, actividade a que se dedicam sites de direita e extrema-direita, ansiosos por se infiltrarem, aglutinarem o descontentamento e criarem falsos inimigos do povo, porque uma causa sem um inimigo onde se possam concentrar todos os ódios e recalcamentos do povo, é uma causa votada ao fracasso, e os demagogos, candidatos a ditadores, sabem-no bem.

As diferenças que registamos entre o tempo que hoje vivemos, e os tempos sombrios que os portugueses viveram no passado fascista, no fundamental, são as que permitem que hoje possamos escolher quem nos governa, e não que tal nos seja imposto por um qualquer “iluminado”, agarrado ao poder, rodeado de milícias e quadrilhas de esbirros. E quando as coisas não correm como esperávamos que corressem, deixando-nos descrentes da democracia, é bom que nos questionemos, pois pode acontecer que aqueles em quem votámos com a melhor das intenções, talvez não tenham sido a melhor escolha, e a responsabilidade disso cabe-nos inteiramente a nós. E em democracia, acima de tudo, há algo que podemos sempre fazer: retroceder, reverter os erros e escolher outro caminho. Haja políticos à altura para saberem interpretar esse sentimento, como veio a acontecer após as eleições de 2015, com a constituição de um governo PS, apoiado pela esquerda parlamentar do BE, PCP e PEV.

Comentários